Empresas de transporte de carga reinventam-se em meio à crise provocada pelo novo coronavírus. A recuperação é lenta, mas há setores em crescimento, como o de vendas on-line. Nessa área, a precarização dos serviços é problema
O mundo que conhecíamos mudou depois que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, anunciou, em 11 de março, em Genebra, na Suíça, que a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, era uma pandemia. Os reflexos na economia dos países foram imediatos e contaminaram toda a cadeia produtiva, assim como o setor de transporte de cargas e logística.
O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), foi o primeiro a fechar escolas, proibir eventos públicos e, em seguida, mandar baixar as portas de lojas, bares, restaurantes, em 19 de março. O impacto foi forte. O fluxo de mercadorias para o DF e o resto do país chegou a cair 44,8 pontos percentuais na semana entre 20 e 26 de março, segundo dados da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC).
Mas, o setor, em meio à pandemia, reinventou-se e buscou soluções de logística para sobreviver. A recuperação é lenta, admitem dirigentes e técnicos. Na última semana pesquisada pela NTC, entre 20 e 26 de julho, o fluxo de mercadorias ainda estava negativo 22,9 pontos (confira gráfico). Em relação à primeira quinzena de junho, no entanto, houve uma melhora de 10,9 pontos percentuais no mês passado.
Ao Correio Braziliense, o presidente da Confederação Nacional do Transporte (CNT), Vander Francisco Costa, disse que o fechamento de algumas cidades para todo tipo de transportes deu um grande susto no setor. Em alguns casos, houve a necessidade de as entidades convencerem prefeitos e governadores de que os alimentos, respiradores e medicamentos precisavam chegar.
O crescimento do e-commerce ampliou o nicho de mercado para o setor de logística. Segundo Vander Costa, somente uma empresa comprou 200 caminhões na semana passada. “A grande dificuldade do e-commerce é operar com os Correios. O frete deles é mais barato, pois têm desoneração tributária. Porém, por serem empresa pública, não possuem muita mobilidade para uma rápida adaptação à nova realidade”, diz. Também em função disso, há uma expectativa de que muitos consumidores estejam dispostos a pagar mais caro pela entrega por meio de serviços terceirizados de entrega, como empresas de aplicativo.
O tempo economizado no serviço on-line, ou e-commerce, compensa, garante o bancário Aurélio Ribeiro Fróes, 43 anos, morador de Águas Claras. Ele era adepto das compras digitais para produtos que vinham de fora do DF. “Com a pandemia, acabei usando o serviço, também, com estabelecimentos locais, porque era seguro e eu convivia com pessoas do grupo de risco”, explica. “Fiz o teste e encontrei lojas (virtuais) que corresponderam às minhas expectativas e, por isso, decidi continuar.”
Além da segurança no momento atual e da comodidade, essa agilidade na entrega das encomendas ficou mais significativa para Aurélio, que acabou de ser pai. “A partir do momento que você pode fazer outra coisa, nesse tempo que gastava antes, vale muito a pena. Posso usar esses momentos para dar atenção à minha família”, ressalta. “A gente consegue perceber que as empresas estão se especializando nesse tipo de venda e melhorando. Então, a intenção é, mesmo depois da pandemia, cada vez menos usar a forma presencial.”
Alessandro Borges dos Santos, gerente da TSV Transportes — filial de Brasília, também destaca o e-commerce. “Nossa empresa teve uma alta em torno de 150% em seu faturamento (nesse segmento). O setor farmacêutico manteve o seu patamar dentro de uma normalidade, sem impactos, e a área de shopping, calçados, confecção e demais setores de consumo não essencial sofreram quedas de 50% a 100%, dependendo do modelo de venda”, explica (confira Duas perguntas para).
Safra
Na avaliação de Vander Costa, da CNT, de forma geral, o setor, além dos serviçoes on-line, começa a dar sinais de recuperação. Quem atua com transporte de alimentos e da indústria farmacêutica não sentiu tanto. O transporte de grãos, segundo ele, não foi afetado pela pandemia, em função do recorde da safra brasileira. “No último mês, algumas empresas, inclusive, compraram caminhões, movimentando, também, a indústria automobilística e de autopeças”, afirmou.
O setor varejista da construção civil também reagiu no mês, com desempenho melhor do que no mesmo período do ano passado. Já o ramo do vestuário, deve sofrer um pouco mais por duas razões: foi o último a abrir, e as pessoas ainda não estão dispostas a sair para comprar. “E elas estão certas. É preciso manter o isolamento social e evitar aglomerações”, defende Vander Costa.
Lauro Valdivia, assessor técnico da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC) e responsável pela pesquisa sobre o impacto do novo coronavírus no transporte de carga, detalha o cenário atual. “Os números mostram que os setores mais ligados ao consumo e a produtos mais baratos ou essenciais estão se recuperando mais rapidamente (alimentos, vestuário e farmacêuticos). Os supérfluos (automóveis e eletroeletrônicos) devem demorar um pouco mais” (confira quadro).
De acordo com Valdivia, existem dois segmentos distintos na atividade de transporte de carga e logística: a fracionada, que é o “picado” destinado a lojas e casas de pessoas; e o de lotação, cargas industriais (insumos, matérias-primas, etc). “A fracionada não sofreu menos, na verdade ela sofreu mais. É que a velocidade da queda na fracionada foi maior e, na retomada, ela está se recuperando mais rapidamente também”, destaca.
Números otimistas ainda estão distantes. “O que se espera é uma recuperação mais lenta agora (depois de atingirmos o patamar de 15 a 20 pontos percentuais). A volta para a condição anterior à pandemia, acredita-se, só deva ocorrer no fim do ano ou no começo do ano que vem (a depender do tamanho do estrago causado nos empregos e nas empresas)”, completa Valdivia.
Compras on-line, o novo normal
Com as mudanças impostas pelo novo coronavírus e o boom das vendas on-line, alguns setores precisaram se adaptar com rapidez para atender às novas demandas. É o caso dos supermercados. Se, antes, o volume de compras assim era baixo, a quantidade de pedidos por esse meio aumentou expressivamente com a covid-19 e o isolamento social. Empresas tiveram de intensificar treinamentos, reforçar ou criar logística para garantir entregas.
Na capital federal, segundo o diretor do Sindicato dos Supermercados do DF Jefferson Macedo, o crescimento dessas vendas foi grande e exigiu mudanças imediatas. “A maioria dos lojistas não estava preparada. Quem tinha esse tipo de operação rodando, trabalhava com demanda pequena. Em algumas lojas em que medimos essa variação, o volume nesse modelo de compra aumentou de sete a oito vezes”, explica.
Para fortalecer as operações, os varejistas locais contrataram pessoal voltado a entregas, mudaram processos e sistemas. “Toda logística interna é a alterada, a parte de separação dos produtos, por exemplo, é muito complexa. Houve dificuldades com fornecedores para compra de equipamentos e foi muito difícil lidar com a demanda.”
Gerente de um supermercado no Guará 2, Duylio Sales, 33, coordena as operações on-line da loja durante a pandemia. Em outubro de 2019, a rede criou um aplicativo para vendas digitais. “Surgiu a ideia de começarmos a implementar e acabou sendo uma coincidência com o momento que veio depois.” No entanto, o volume praticamente triplicou com a chegada da pandemia. “A gente comemorou muito no começo do ano, quando chegamos a 27 entregas. Hoje, fazemos em média de 80 a 100 diariamente.”
O crescimento das vendas on-line criou uma série de problemas, pois a estrutura não era suficiente. A fila de espera para entregas chegou a ficar em três dias. “Não estávamos preparados. Tínhamos poucas pessoas treinadas. Foi preciso contratar mais gente, fazer adaptações, melhorar nosso sistema e capacitar.
Hoje, conseguimos entregar no mesmo dia ou, no máximo, no próximo”, conta “Aprendemos, na prática, que a loja on-line é real, apesar de ser eletrônica, e o comportamento de compra assemelha-se com o de quem vem aqui. Mas, o trato com o cliente tem de ser muito atencioso e precisamos saber resolver rapidamente problemas, como trocas de produtos em falta.”
Mais tempo
A tarefa de caminhar entre prateleiras, comparar produtos e selecioná-los nas lojas físicas de supermercados era agradável para a empresária e consultora em design organizacional Ingrid Silveira, 39, moradora do Jardim Botânico. Por isso, apesar de usar serviços on-line para adquirir equipamentos de tecnologia e peças de decoração, ela não pensava em aderir a esse método para as compras mais cotidianas. “Eu gostava de ir ao mercado e nunca tinha tido a necessidade de mudar”, diz.
Com a chegada da pandemia, entretanto, a rotina dela foi alterada e cumprir o distanciamento social passou a ser prioridade. “Estamos fazendo aqui um isolamento bem restrito e responsável. Então, veio a necessidade das compras on-line no mercado e de entender como funcionavam”, lembra.
Quando passar a crise da covid-19, Ingrid admite que deve trocar o prazer da experiência nos supermercados físicos pela praticidade das lojas on-line. “Eu sou uma pessoa megaocupada e o meu trabalho, com a pandemia, só aumentou. Ter esse tempo a mais, porque não preciso me deslocar, consigo fazer uma compra rápida sem sair de casa. Foi um ganho de tempo e de qualidade de vida”, avalia.
Inovação, tendência e precarização
A tendência de que transportadoras destinem a autônomos a etapa final de entregas, sobretudo de produtos comercializados on-line, suscita, na prática, debates e atritos entre trabalhadores e empresas numa relação em que a precarização está sempre no centro das discussões. A operação sem emitir notas de transporte de mercadoria e falta de vínculo empregatício preocupa as entidades do setor. “Não somos contra, mas é preciso que haja regulamentação para evitar a concorrência desleal. As transportadoras recolhem impostos, têm responsabilidade social, se o motorista se envolve em acidente, eu sou responsável”, argumenta o presidente da CNT, Vander Costa.
No Distrito Federal, há cerca de 40 mil pessoas cadastradas em aplicativos — incluindo os de delivery de alimentos —, segundo levantamento da Associação dos Motoboys Autônomos e Entregadores do Distrito Federal (Amae/DF). De acordo com a entidade, não há estimativa oficial de quantos atuam apenas nas entregas de produtos e encomendas, mas a maioria dos que estão nesse ramo presta serviço para a Loggi, transportadora que faz uma espécie de “uberização logística”. Os trabalhadores cadastram-se no aplicativo da empresa e aceitam corridas com um número determinado de pacotes e uma distância a ser percorrida. Apesar de alguns usarem carros para a tarefa, os motoboys são o maior grupo.
Na manhã da última quinta-feira, o Correio acompanhou o início da jornada de alguns desses trabalhadores. Uma tenda inflável montada no estacionamento de um supermercado no Setor de Indústrias e Automóveis (SIA) é um dos quatro pontos para retirada dos produtos que precisam ser levados para a casa de consumidores no DF. Ali reúnem-se dezenas de entregadores cadastrados na ferramenta. Todos precisam, para se inscrever, ser microempreendedores individuais e, portanto, não há vínculo empregatício.
No início da manhã, o movimento é intenso. O clima frio e o vento — a mínima ficou em 12ºC — obrigavam os trabalhadores a se proteger sob casacos e gorros. Não há espaço destinado para que aguardem, de modo que, ao lado da tenda azul, forma-se uma grande fila. Nos dias de sol intenso ou de chuva, nada muda. A espera é ao relento. Também não há banheiros, nem água. Ao redor da estrutura, ficam dispostos sacos onde estão os pacotes que serão levados pelos que aguardam. Para conferir o conteúdo nas embalagens, os entregadores precisam esparramar no chão os produtos, pois não há lugar específico para isso.
Descartável. É essa a palavra que Rafael Soares, 31, usa para descrever a maneira como se sente pelas atuais condições de trabalho. Morador de Valparaíso, Rafael foi garçom e porteiro, mas há pouco mais de dois anos, desempregado, acreditou que o aplicativo poderia ser uma saída. “No começo, era muito atrativo, os valores eram melhores, havia bem menos problemas”, conta. Com o tempo, no entanto, a percepção mudou. “Trabalho de 12 a 14 horas por dia de segunda a sábado, corro riscos e a responsabilidade é muito grande para pouco retorno.” Em média, ele diz tirar, num dia bom, cerca de R$ 100. “O pagamento é de R$ 1,50 por pacote com acréscimo de R$ 0,75 por quilômetro rodado”, detalha. O veículo e toda a manutenção são responsabilidade dos entregadores.
De todas as dificuldades diárias enfrentadas na rotina até aqui, uma situação o marcou. Uma das modalidades de entrega oferecidas no app permite que o entregador busque o pacote diretamente em residência ou comércio e leve para o destino. “Uma vez, fui pegar uma encomenda. Eram quatro iPhones. Quando cheguei ao local e peguei, fui logo surpreendido por diversos policiais.” Os aparelhos tinham sido comprados por um cartão clonado e os oficiais suspeitaram que Rafael fizesse parte do esquema. “Fui à delegacia, fui xingado e perdi meu dia até explicar que era só entregador e como trabalhava.” Depois disso, ele enviou um e-mail para a companhia. “Nunca fui respondido. É uma humilhação que a gente nunca esquece. Eu dependo do meu trabalho para viver.”
O medo é uma constante para quem trabalha no ramo. Há o temor de sofrer acidentes, de ser assaltado e de ser responsabilizado por problemas nas entregas e, por consequência, sofrer bloqueio no app. Mais recentemente, uma nova preocupação foi adicionada ao catálogo de receios: a de ser contaminado pela covid-19. Segundo o relato de vários motoristas, foram cedidos a eles, durante todo o período da pandemia, um pequeno frasco de álcool em gel e uma máscara.
“Tudo nós que tivemos que comprar. As máscaras, álcool, porque o que recebemos não durou nada”, diz Gilvan Guedes, 45, morador do Lago Norte. Por estar em contato constante com muita gente, a preocupação é grande. “Nós ficamos aqui com essa aglomeração e estamos na rua o tempo inteiro. Não tem um que não esteja com medo, hoje.”
Por meio de nota oficial encaminhada pela assessoria de imprensa, a Loggi afirmou que oferece kits de proteção aos entregadores contendo álcool em gel, máscara e luvas. “A reposição é feita mediante solicitação, que deve ser feita por formulário específico, enviado pelo próprio aplicativo. A empresa também oferece seguro com cobertura em casos de invalidez ou morte decorrentes de acidentes em rota.”
A respeito dos bloqueios dos colaboradores, a empresa alega que a rescisão só em casos de descumprimento de uma ou mais normas contidas no Termo de Uso e Condições e que o documento é enviado previamente aos entregadores para ser analisado e aceito antes do início das atividades.
A empresa nega redução de tarifas, como alegam entidades do setor. “Os entregadores têm conhecimento dos valores das rotas no momento que são ofertadas no aplicativo, podendo aceitar ou recusar sem nenhum tipo de prejuízo, independentemente da escolha”, destaca trecho do texto.
Fonte: Correio Braziliense